Um relato trouxe à memória a canção que fala sobre pessoas que seguem seus passos como reféns de uma vida sem saída. Vida sem vida. Sociedade onde seres humanos se tocam sem perceber.
O homem dizia: “Na ausência indaguei-me: Se os nossos papéis estivessem trocados, haveria eu procedido como ele, acharia a maneira conveniente de expressar um voto generoso? Talvez não. Acanhar-me-ia, atirar-lhe-ia de longe uma saudação dissimulada, fingir-me-ia desatento. Essas descobertas de caráter estranho me levam as comparações muito penosas: analiso-me e sofro”.
Esta é a fala de um homem no cárcere. Relacionamentos encarcerarão seu corpo e sua alma. Miseriazinhas que o envenenaram.
“Fiz o possível por entender aqueles homens, penetrar-lhes na alma, sentir as suas dores, admirar-lhes a relativa grandeza, enxergar nos seus defeitos a sombra dos meus defeitos. Foram apenas bons propósitos: Devo ter-me revelado com frequência egoísta e mesquinho. E esse desabrochar de sentimentos maus era a pior tortura que podia me afligir naquele ano terrível.”
Em tom de lamento diz: “indivíduos de vontade fraca habituam-se ao cárcere”.
A postura do ser humano no caminho muitas vezes verruma o espírito de outros seres humanos. Posturas cheias de alçapões. Atitudes burlescas e tão estúpidas que rompem em falas vãs.
Desperdício de energia que corrobora desfavoravelmente juízo que eles formam da inteligência do próximo. Recursos pueris: Crianças barbadas e maliciosas.
O cárcere impõe a quebra da vontade. Agora atordoado como se lhe dessem um murro na cabeça. Julga-se autor de várias culpas, mas não sabe determina-las. Arrepende-se vagamente de asperezas e injustiças, ao mesmo tempo supõe-se fraco, a escorregar em condescendências inúteis e quer endurecer o coração, eliminar o passado, fazer com ele o que faz quando emendava um período - riscar, engrossar os riscos e transformá-los em borrões, suprimir todas as letras, não deixar vestígio de ideias obliteradas.
“Um daqueles que comigo andava, abraçou-me em silêncio e foi sentar-se a pequena distância, de costas para mim. Não me olhou uma vez. Do ponto de desembarque, entregues os pacotes, veio abraçar-me de novo. Disse adeus. Confundi-me, gaguejei”.
O ser humano ausente do mundo (no cárcere) começa a dar às coisas valores novos. Sucede um desmoronamento. Torna-se indispensável retirar dele migalhas de vida, cultivá-las e ampliá-las. No cárcere, de outro modo, seria o desastre completo, o mergulho definitivo.
Seu corpo mergulhado em sombria indiferença, agora as ideias lhe chegam nítidas, fogem, voltam, são substituídas, atropeladas, impossível fixa-las – coisas muito claras que partem.
Seres humanos esmagados, pulverizados, suprimidos no direito de se sentarem a mesa, dormir quando estão cansados. São condenados antes do julgamento, e nada compensa o horrível dano.
Tudo começa com palpites desprovidos de significação. Seres humanos quase invisibilizam-se na penumbra. Os outros conseguem prever o que virá menos aquele que se deixou envolver pela “amizade”. Começa a esboçar-se a terrível situação que irá perdurar: Emaranham-se em cordas, embrenham-se em labirintos.
Amizades arrepiadoras! Surpresas tolas, por causa das generalizações apressadas. Entre estranhos não vive, vegeta-se.
Silêncio diante do desabafo daquele que declarou amor àquilo que não amava e declarou fidelidade àquele que definitivamente não o conquistou.
Tenho ficado mais silenciosa diante de alguns relatos e fatos. Eles me bastam para revelar quem é o próximo. O máximo que faço é depois de algum tempo buscar uma associação histórica que os torne útil.
Dou espaço para que o ser humano se revele. Absorvo o essencial o que se torna intrínseco em mim. Não é mais um fato, feito mochila que levo nos ombros, mas uma parte de mim, algo que incorporei na experiência de viver.
Esse é o mistério que envolve os relacionamentos sejam eles em quaisquer âmbitos.
A postura no caminho evidencia a verdade – evidencia a partir de outra forma de linguagem.
Existem seres humanos que tem muito conhecimento, mas não sabe significar na vida de outros. O conhecimento aprisionou o coração.
Outros são especialistas na arte de temperar o que sabem. Coisa boa é ouvir alguém que nos acrescenta que respeita que honra que cumpre o que diz. Gente que tocou a vida com os cinco sentidos e perscrutou os mistérios que o cotidiano oculta. Gente que descobriu a arte de enxergar sem alterar a substância dos fatos.
Pessoas não são descartáveis porque já foram seduzidas e o desafio já se findou. A fidelidade se nutre de outro alimento, o do cuidado, da permanência, do respeito, da palavra empenhada, da reinvenção. Amigos têm de reinventar os sentimentos para que eles não se percam nas esquinas.
Desejos não podem se posicionar na diagonal da existência humana, pois assim não entrarão no curso natural dos acontecimentos. Não é horizontal, nem vértice. Na verdade não são amizades, são meras ilusões.
Acredito que a gênese das frustrações humanas está justamente na inadequação entre a ilusão e o real. Está no ato de desejar o que não existe, o que não se configura nem mesmo como possibilidade que possa ser construída aos poucos.
Amizades que deixam de existir porque a brutalidade da realidade desmorona a ilusão.
Passa-se a perceber o antes oculto, o pouco mostrado, o omitido. Com isso, caem por terra as máscaras, e os papéis. Sobram os atores sem o auxílio da maquiagem e refletores e, nesse momento, eles se olham e reconhecem: “Somos só isso, nada mais!” E ser só isso não basta. A ilusão não foi correspondida. Não havia respeito. Não era amor o que sentiam, porque é impossível amar aquilo que não se conhece.
Ao final de tudo, o perdão e a despedida. Procurarão outros lugares para acomodarem suas bagagens, outros portos para que possam ancorar suas expectativas (novos amigos), palcos onde representarão o duro papel de amar o que não existe cultivar o que não é real.
Encontros e despedidas. Um eterno e temporário chegar e partir, um constante sentir amigo para sempre se esvai com o final da tarde.
Há que se refazer os conceitos que temos de amizade. Não é possível continuar sob a prisão que o mito nos impôs. Esse modelo de amizade, medieval e amórfico, não faz amadurecer o coração humano, ao contrário, ele o aprisiona na imaturidade relacional que exige que o outro seja a satisfação dos seus anseios e desejos mais profundos.
Regina Lopes