Kushner inicia um de seus livros com a seguinte questão: “ (...) Quando a crise se abate repentinamente sobre nós ou sobre aqueles que amamos, ela desperta em nós uma série de emoções, desde o sentimento de culpa por aquilo que fizemos ou deixamos de fazer, até a revolta contra Deus por ter permitido que tal tragédia acontecesse”.
“(...) Perguntar ‘Como pôde Deus deixar que isso acontecesse comigo’ não leva a nada. É a pergunta errada, é uma pergunta que não tem resposta. E mesmo que pudéssemos descobrir quem foi o culpado... e dai? (...).
Kushner diz: “Essas coisas não podem ser explicadas e não podem ser compreendidas. A verdadeira pergunta é: o que fazer agora?” Ele pergunta: “Será que conseguimos aceitar o fato de que esta vida é imperfeita? Será que conseguimos amá-la assim mesmo, simplesmente porque é a única que temos? Será que conseguimos reconhecer a capacidade de amar como armas que Deus nos deu para que possamos continuar a viver num mundo que não é de todo justo e perfeito?”
Quantos de nós já não fomos esmagados pela tragédia, quantos não vivenciaram um acontecimento cruel e absurdo que fez desmoronar nosso mundo, quantos de nós não foram machucados no caminho.
Fábio de Melo diz que quando os nossos pés descalços se colocam diante das duras pedras do sofrimento, quando a fragilidade de nossa condição nos leva a trilhar o inevitável caminho das sombras, quando a vida nos revela que somos portadores de uma essência de vidro, é importante que a gente se livre de pressa da facilidade das respostas prontas, porque diante da dor sofrida, mais vale um silêncio, uma pausa, que uma palavra inoportuna.
A vida é feita de avessos, de contrários. Há uma canção de Fábio de Melo muito significativa para mim que diz : “ Só quem já provou a dor, quem sofreu, se amargurou, viveu a cruz e a vida em tons reais. Quem no certo procurou, mas no errado se perdeu, precisou saber recomeçar. Só quem já perdeu na vida sabe o que é ganhar. Porque encontrou na derrota algum motivo para lutar. E assim viu no outono a primavera, descobriu que é no conflito que a vida faz crescer. Que o verso tem reverso, que o direito tem o avesso. Que o de graça tem seu preço, que a vida tem contrários e a saudade é um lugar que só chega quem amou e o ódio é uma forma tão estranha de amar.
Que o perto tem distâncias e o esquerdo tem direito. Que a resposta tem pergunta e o problema, a solução e o amor começa aqui, no contrário que há em mim. E a sombra só existe quando brilha alguma luz.
Só quem soube duvidar, pôde enfim acreditar. Viu sem ver e amou sem aprisionar. Quem no pouco se encontrou, aprendeu multiplicar. Descobriu o dom de eternizar. Só quem perdoou na vida sabe o que é amar, porque aprendeu que o amor só é amor se já provou alguma dor. E assim viu grandeza na miséria. Descobriu que é no limite que o amor pode nascer”.
A vida é assim, feita de contrários, reinventada dia após dia quando somos capazes de percorrer becos comuns, encontrar pesoas comuns com dilemas comuns e na finitude do instante compreender o eterno.
Nesta manhã de segunda feira acordei com uma canção na mente. O som da canção entoada em capela trouxe a memória homens simples que me ensinaram a atitude do êxodo e do êxtase – uma canção que explica com maestria o sentido do amor. Os avessos nos tornam humanos, os contrários nos conferem um selo de qualidade à vida, porque tem o dom de revesti-la de sacralidade, de retirá-la do comum e elevá-la.
A vida é uma colcha de retalhos e muitas vezes ficamos com nosso retalhinho na mão sem saber onde iremos colocá-lo, mas estes retalhos por mais tingidos de dor e por mais trágico que possa nos parecer, estão prenhe de motivos e ensinamentos que nos tornarão melhores. Tudo depende da lente que usamos para enxergar o que nos acontece. Tudo depende do que deixamos demorar em nós.
Encerro com um trecho da canção trazida a minha memória nesta manhã: “ (...) Ó Mestre, fazei que eu procure mais consolar, que ser consolado; compreender, que ser compreendido; amar, que ser amado. Pois, é dando que se recebe, é perdoando que se é perdoado, e é morrendo que se vive para a vida eterna.”
Regina Lopes